Mercado de carbono no Brasil: a tecnologia evolui, mas a insegurança fundiária persiste.

Introdução
A sanção da Lei nº 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), marca um avanço na regulamentação do mercado de carbono no Brasil. Ao dividir o setor entre o mercado regulado e o voluntário, o país dá um passo importante na busca pela neutralidade climática. No entanto, por trás do entusiasmo com a nova legislação, um desafio estrutural persiste: a insegurança fundiária.
Apesar da crescente sofisticação tecnológica para medir a captura de carbono — com sensores, inteligência artificial e modelagem molecular —, ainda não existe resposta definitiva para uma pergunta fundamental: quem tem o direito de comercializar os créditos gerados por essas florestas?
O paradoxo da precisão tecnológica versus a fragilidade jurídica
Hoje, é possível estimar o estoque de carbono de uma floresta com alta exatidão. Porém, sem um sistema confiável de governança territorial, esses dados não se convertem em transações seguras. A insegurança fundiária mina a credibilidade e a viabilidade do mercado de carbono, transformando uma oportunidade promissora em um risco jurídico.
O problema não é novo. Rui Barbosa já defendia, no século XIX, que um mercado imobiliário eficiente dependia de cadastros transparentes e registros confiáveis. No contexto atual, esse princípio é mais relevante do que nunca. Projetos de carbono precisam ter lastro jurídico sólido — e isso só é possível com a devida regularização das terras.
Na Amazônia brasileira, por exemplo, a sobreposição de títulos, registros imprecisos e ocupações irregulares cria um ambiente hostil à comercialização legítima de créditos. A recente Operação Greenwashing, da Polícia Federal, revelou um esquema de grilagem que movimentou mais de R$ 100 milhões com a venda indevida de créditos de carbono em áreas públicas do sul do Amazonas. Situações como essa colocam em xeque a integridade do mercado, tanto no Brasil quanto no exterior.
Marco legal e lacunas persistentes
A nova legislação estabelece diretrizes para o funcionamento do mercado regulado e voluntário, além de definir a responsabilidade do órgão gestor. A exclusão do agronegócio das obrigações do SBCE, no entanto, reforça a necessidade de mecanismos adicionais de controle e verificação no setor voluntário — justamente onde a maioria dos projetos de créditos florestais está concentrada.
Além disso, o texto legal não resolve o problema da titularidade fundiária. O CAR (Cadastro Ambiental Rural), por exemplo, segue sendo utilizado como critério de elegibilidade para certificação de créditos em algumas iniciativas privadas, apesar de não ter valor como título definitivo. Isso abre margem para fraudes e disputas judiciais, como no caso de projetos REDD+ em áreas sobrepostas a assentamentos agroextrativistas no Pará.
Outro fator de risco é a ausência de diretrizes claras sobre o consentimento de comunidades tradicionais e povos indígenas cujos territórios podem ser utilizados em projetos sem a devida consulta prévia, livre e informada. O marco regulatório do carbono precisa dialogar com os direitos territoriais reconhecidos na Constituição Federal e nos tratados internacionais.
Caminhos possíveis e a urgência de reformas estruturais
A digitalização dos registros fundiários e a interoperabilidade entre bases de dados são medidas fundamentais para mitigar riscos, mas não substituem a necessidade de uma reforma profunda no sistema de regularização de terras. Sem essa base jurídica, a segurança das transações continuará comprometida — afastando investidores e prejudicando a reputação do mercado brasileiro.
Métodos tradicionais de due diligence fundiária já se mostram ineficazes diante da complexidade dos projetos de carbono. É necessário um novo modelo de verificação, que combine tecnologia com análise jurídica territorial e mecanismos de certificação pública que deem segurança às operações.
Conclusão
O mercado de carbono brasileiro pode ser um instrumento poderoso na mitigação das mudanças climáticas. No entanto, para que cumpra esse papel de forma legítima, é indispensável enfrentar o dilema fundiário. Sem segurança sobre quem é o titular da terra, não há sensor, drone ou satélite capaz de garantir que os créditos gerados ali sejam válidos.
Governança fundiária, segurança jurídica e inclusão social devem caminhar lado a lado com os avanços tecnológicos. Apenas assim o Brasil conseguirá consolidar um mercado de carbono robusto, confiável e alinhado aos princípios da justiça climática.